Arquivo mensal: outubro 2009

Eles

vide capítulo primeiro:. https://lpfernandes.wordpress.com/2009/07/03/eles/

Capítulo segundo: Contato

  Uma semana depois e lá estavam os quatro, de volta. Dois desamparados e seus dois bêbados. É claro que ainda no início da noite todos se encaixavam apenas em “desamparados”. Estavam lá, alimentando a monotonia da vida; cinco dias de trabalho, uma noite no bar. Dormir até o meio-dia no dia seguinte e reiniciar o ciclo na segunda-feira que sucede.

 Ele, como sempre, entra pelos fundos, vem cruzando a pista até o balcão.

 Ela, como sempre, na direção contrária, que ir ao banheiro…  Cruzam-se no meio do salão.

Oi.

Eu te conheço?

Eu já te vi algumas vezes, senhorita. Mas se você me conhece, cometeu a indelicadeza de entrar no meu sonho e assistir ao que não foi convidada.

Você é maluco?

Você é?

– ...Ah, é maluco mesmo.

Nesse caso, somos dois.

O que tenho de maluca?

E o que tenho eu?

Tem algum problema?

Todos temos.

Mas tem algum agora?

Todos temos. Todo o tempo. …Ou deixa os seus em casa ao ir à padaria?

O seu caso é sério.

Talvez nem tanto quanto o seu, ou mais, ou tão quanto. Que importa?

– Sua vida é isso, um aglomerado de incertezas?

E a sua é onisciente, tens mesmo a convicção exata para tudo?

Não sei.

Agora sabe, já que “não sei”, não poderia ser a resposta.

(risos)

Eu te fiz sorrir.

Eu sorri por conta própria.

Mas eu proporcionei.

Talvez.

Ta feliz?

Não sei. Deveria?

Sorrindo não está triste, ao menos isso.

Pode ser que sim, pode ser que não.

Ah, onde estão as suas certezas?

Então quer suas dúvidas de volta?

E o louco aqui sou eu?

Por que não?

Todos temos loucuras, todos temos problemas…

Loucura, nem todos. Problemas, você já disse.

Que seja, permita-me o poder da ênfase. Se eu disser que é louca, é louca, então todos podemos ser.

Não, se disser que sou louca, direi que não.

É a sua palavra contra a minha, os seus olhos contra os meus… Não será de toda certeza, nem toda dúvida, será uma possibilidade. Eu acredito, você não, e nos isentaremos da verdade absoluta.

Então você gosta de filosofia?

Gosto da vida, por mais que seja mesquinha. Então você gosta de filosofia?

Gosto de ser mesquinha, por mais que não me importe com a vida. Então não vê verdade no que digo?

Vejo mais que isso. Vejo o sorriso triste que quer abraço, vejo olhos carentes onde até lágrima, está escasso. Só não vejo o coração que você insiste em camuflar.

 – Como sabe se é verdade? Com base em que você afirma tudo isso?

Não sei.

A dúvida não faz da vida um risco?

Nem sempre a dúvida é um risco e nem todo risco é desnecessário.

Deve fazer algum sentido… Mas não importa, já que só quero fugir.

De onde?

“Para onde”, seria a pergunta certa.

Para ir tem que vir, e para os dois tem que haver um motivo, incentivo ou propósito.

Definitivamente, sou mesmo a personagem das dúvidas, estava no papel errado.

Mal sabe quem és, torna-te incapaz de escolher um lado.

Não quer ir embora…?

Tudo bem, eu vou.

Hei, não terminei minha pergunta!

…Peço que continue sorrindo, encantando loucos e curiosos, como eu.

Não quer ir…

Desculpe-me se a importunei.

Embora…

Nem precisa concluir. Sou ciente da insanidade que vê em mim.

–  …Comigo.

Um silêncio interveio como “sim”…

Eu vou!

Exposição sobre Galileu Galilei no Vaticano?  Presidente dos EUA ganhando o Prêmio Nobel da Paz?  Rubinho “disputando” título?  …É, acho que esse ano dá para mandar carta para o Papai Noel, esperar a Fada dos Dentes e ainda ver o Sarney “emancipar” o Maranhão.

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Bosquejos de Vincent – parte II

Vide Bosquejos de Vincent parte I.

Nas noites não havia outro caminho, a não ser aquele que atormentava minh’alma e meu sono, esse que há tempos inexiste. Na rua, as portas estavam sempre fechadas, as calçadas estavam nuas e as folhas secas das árvores estavam ali, no chão, com movimentos quase oniscientes ao mesmo tempo tenebrosos. Eu só podia escutar o arranhar da folha no chão. A melodia era fúnebre, como tudo que existia ao redor. O mundo estava de luto, “um luto eterno” – pensei. O vento era vingativo, satisfazendo o meu rancor, há dois dias não cantava.

Ao me debater na incerteza da minha sanidade, sem saber, se aos meus desejos, ceder ou não… Fui pelo sim. Atônito com a visita do possível mensageiro de quatro patas. Postei-me à rua, a fim de encontrar o cão. “Onde encontrar este, que a meu ver é oriundo dos mortos? Onde encontrar o ser, que pode fazer-me ver um propósito?” – me perguntava a cada passo, pouco convicto no êxito da busca, resolvi voltar, já que a rua era um convite sem volta para o inferno, por mais que eu não sabia onde estava a porta, ou os caminhos para chegar até lá. As tentações são evidentes, alguém tenta me persuadir de que cair na desgraça é apanhar a chave do mistério. Sobreviverei enquanto puder, ou enquanto eles quiserem.

Sabedoria do não saber; “jeitinho brasileiro” de julgar.

  Nós, os brasileiros – melhor, os espertos! – temos a infeliz mania de inventar burrice alheia. Os portugueses, juntos aos espanhóis difundiram a expansão marítima. Um marco para a economia européia a partir do século XV. Portugal revolucionou o sistema de cartografias, difundiu o uso da bússola e foi  patrono da engenharia marítima com as extraordinárias caravelas. Contudo, segundo a nossa onisciente opinião, são burros. Nossas índias (nativos) foram cedidas às necessidades masculinas de seus marinheiros, nossos índios ao trabalho forçado, nossas “riquezas” a proveito de Portugal e eles é que são burros?

  Brasileiro se julga o onipotente da América do Sul. O Argentino é burro, mas na Argentina, diferentes classes sociais foram às ruas em 2001, revoltadas com a crise econômica e o quadro de corrupção do país. O governo tentou controlar a situação, mas o resultado foi a renúncia do presidente Fernando de La Rúa. A nossa classe média, diz que tirou o Collor de Melo. Claro, claro…

  Boliviano é burro, mas nacionaliza o gás que nós produzimos e nos impõe impostos exorbitantes sobre o mesmo. Equatoriano é burro, mas quem tomou “golpe”, foi o nosso BNDS (Banco Nacional de Desenvolvimento Sustentável), já que eles assumiram que não vão pagar a dívida que têm com o mesmo.  Chileno é burro, mas no Chile o investimento em educação é quase o dobro que no Brasil. Por lá, você poderá questionar qualquer pessoa na rua que, ao menos, ela tentará responder a altura… Quais são os verdadeiros burros?  

  Nossa onipotência infundada sobressai a nossa suposta inteligência. Dizem que maturidade vem com o tempo. Ou esperamos ou entramos na dança do carnaval.

  Não são as olimpíadas que vão romper com o preconceito que existe sobre o nosso país, senhor presidente. Mas sim, os nossos conceitos sobre os demais.

Menina com fome d’alma

  Enquanto eu sentava no banco, avistei-a caminhando ao redor do lixo. Acredito que a sacola maior cabia aquela criatura dentro, o que mostra o quanto era pequena, mas foi, pelo menos por alguns minutos, imensamente significante. Cabelos curtos, sujos. As roupas não serviam mais, mas pouco importa, já que nus, só estavam os pés. Abriu um saco, olhou com desdém, revirou uma caixa de papelão.

  Não era um dia de sorte, trazia essa imagem no semblante. Por acaso encontrou uma garrafa pet, com um resto de um líquido escuro. Poderia ser refrigerante. Ela cheirou o “produto” – não para certificar o estado de conservação, quando fazemos normalmente diante de um alimento. Isso para ela pouco importava, pois era o lixo, nada ali ia cheirar bem, o gesto foi no intuito de identificar do que se tratava, mesmo sendo incapaz de fazê-lo. É instintivo. Contudo, devolveu a garrafa ao chão com um ar de frustração. Definitivamente, não era um dia de sorte, aliás, “era um domingo, isso basta” pensei. Ingenuidade minha. Era domingo para mim, para ela era um dia igual a todos, já que o seu vazio é constante e todos os seus dias assim, mórbidos, como aquele (meu) domingo.

  Pouco antes de se afastar dali, ela olhou para mim. Não sei como me notou, já que eu estava a uma distância considerável. Só sei que viu… Voltou para o ponto de origem, tentou refazer a cena inicial, mas dessa vez mexia ao lixo com maior desdém, com a convicção de quem não quer nada, pois a sua “busca” já tinha sido feita, no mesmo local, minutos antes. Ela só queria chamar a atenção do seu observador. Por um momento fiquei constrangido afinal, eu a encarava! Fingi que tinha parado de olhar, mas foi inútil, ela continuou o teatro, pois estava certa de que eu ainda estava lá, observando-a. O que queria? Despertar-me piedade, para que assim eu a levasse para casa? Pouco provável. Ela não teria idade mental para formular uma maneira de me persuadir quanto a minha “falta de bondade”. Não seria capaz de circundar o lixo com um ar de sarcasmo a fim de estampar em mim a minha própria angústia e dizer, sem soltar nenhuma palavra, “Veja como sofro, seu burguês! O que você, meu senhor, tem feito para mudar essa realidade?”. Dava dois passos, olhava ao chão e me fitava simultaneamente, como se fosse um ritual, me sugando os sentidos e a capacidade de “pensar”, tornando-me um acéfalo, inerte a tudo. Pergunto-me se ela tinha consciência da forma que roubou a cena e assumiu como protagonista, sem grande platéia, mas satisfeita com o show.

  De repente, sem mais, ela partiu. Não sei se desistiu, na verdade nem sei o que queria, mas seja lá qual tenha sido sua intenção, não durou muito (para ela). Saiu caminhando devagar. Diferente de quem está indo para casa, já que, provavelmente, nem isso tinha. Era alguém indo em direção de lugar nenhum. Isso ficava claro, pois trazia nos olhos, a dolorida expressão de quem faz pouco caso da vida, já que não entende, por que ela não a acolheu. Devia ter fome, mas não ia encontrar comida tão fácil. O que pensava? O que desejava? Para onde ia? Perguntas que eu nunca vou conseguir responder. Enquanto ela distanciava do meu campo de visão, uma navalha ia cavando o meu peito. Ela não tinha noção total da gravidade das coisas, dava “pulinhos” discretos, uma sutil carecterística de criança, já que a infância nunca lhe foi entregue.

  Eu poderia ter ido ao mercado e comprado uma bolacha ou um chocolate. Não me custaria nada, enquanto para ela seria um prêmio. Não sei se me agradeceria, ou retribuiria com um singelo sorriso. Quem sabe os dois, ou nenhum deles. Por um lado o alimento comprado passaria a fome daquela criança por alguns instantes e remeteria a minha “boa ação do dia”.  Por outro, seria uma ferramenta, que permitiria à minha mente remeter a ideia do “eu fiz minha parte”, consolidando a minha hipocrisia e deixando a consciência falsamente limpa.

  Ainda era cedo, clima frio, início do dia. Passei o resto da semana anestesiado, para não dizer vazio. Perdi-me naqueles olhos escuros que traziam em si uma incógnita irrespondível. Menina da saia rasgada e do cabelo sujo… Volte com o vento que a levou, encontre-me e devolva a minha alma, pois parece que desisti de “acreditar”.

  Como fazer uma criança entender que não pode ter um hambúrguer, grande e “bonito”? Aquele que outro garoto da sua idade tem em mãos, separados pelo vidro da desigualdade (que esconde um Big Mac)…  Tão como explicá-la o porquê de não ter uma casa, carro e roupas. Não há possibilidade. Vivera uma antítese onde a incerteza é o entendimento e a angústia é a consequência de tudo; da dúvida, da inconstância e dessa exclusão social (a ela) injustificável e incompreensível. 

  Até quando vamos negligenciar a existência delas, as roubadoras de almas? Até que todas morram e outras centenas ocupem seus lugares, ou até morrermos nós, para que os descendentes se encarreguem da culpa? A existência dessas questões é um problema. Mas o pior, é nossa incapacidade de respondê-las.