O ensaio é real, mas a cegueira é cognitiva

Com uma semana repleta de imagens internacionais fortes, eu fortaleço minha concepção hobbesiana das coisas mundanas, no mais primitivo do seu enredo, sintetizo com a célebre: “o homem é o lobo do homem”. José Saramago, escritor português em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira ilustra brilhantemente, ainda que submerso em um ideal fictício, a essência animal que nos aflora quando postos a prova. A sobrevivência é pressuposto da resistência, é a explicação para as atitudes mais grosseiras, para a “arte” de se digladiar, se canibalizar etc. e o livro não é a única referência a esse estado natural do homo sapiens, mas é pelo qual eu mais tenho apreço, pois por mais metafórico que seja, é o mais próximo que se pode chegar de uma situação real, onde o desprezível da “gente” poderia vir a ser exposto, pois ratifica os animais que somos e por mais inteligentes que nos imaginemos, mais seres ruins, ingênuos e egoístas nos mostramos.

Eu gosto de citar o livro (também o filme – homônimo – sobre a obra, dirigido pelo brasileiro Fernando Meireles) como um exercício de reflexão àqueles que dizem que o ser humano é bom e na verdade possui apenas desvios de caráter, de conduta, de educação…  A verdade é negativa.  Somos ruins! Mas não é que somos todos sádicos, não é que nos alimentamos de maldade ou coisa do tipo, mas é que o nosso egoísmo traduzido em “sobrevivência” tem justificado atos de autodestruição incompreensíveis.

Ensaio Sobre a Cegueira traz na verdade uma dose de otimismo, pois ilustra o egoísmo em face de um instinto de sobrevivência, sobrecarregado de medo e oportunismo animal, na essência humana da carne, na nossa fraqueza, ante a tão superior e no caso fragilizada capacidade de cognição (que, em tese, nos distinguiria dos cães, por exemplo)…  É forte, mas é assimilável. É ruim, mas é compreensível. Não é que concordamos, mas entendemos as possibilidades e justificativas ainda que em conteste. A situação caótica do filme é muito melhor que o mundo de hoje, é melhor que 2013 na Síria, no Egito, quiçá nas favelas do Brasil, que não são culminadas por catástrofes (como é na história), mas por deficiências e atos vontade.

O filme ilustra em imagens cinematográficas a sobrevivência no caos, mas de forma eufêmica. A interpretação que faço é a de que “pegaram leve” na tela. O homem é capaz de ir muito além, para termos essa certeza é só entrar na internet… Essa semana, se você digitar Síria ou Egito, vai saber do que falo, porque vai encontrar facilmente vídeos de uma violência incomum, generalizada, justificada apenas pela manutenção do poder (sem entrar nos pormenores). O que ocorreria se o motivo fosse a sobrevivência? Meireles maneirou na dose.

Há uma série de discussões políticas e embates diplomáticos que norteiam as atitudes, as decisões, o uso da força, a decisão (ainda não tomada e já tardia!) de intervenção e isso é o que importa, como em um jogo de tabuleiro com pessoas no lugar dos pinos. É a burocracia da conveniência, dos acordos comerciais, das políticas de vizinhança e assim sucede… Enquanto o Obama decide se foi ou não um atentado químico (como se fosse essa a única maneira de se violar direitos da humanidade) lembramos que mais de 100.000 pessoas foram mortas em cerca de dois anos (números apenas na Síria). Segundo o líder Bashar al Assad, o que tem sido feito pelo governo é só uma tentativa de manter a ordem, para não perdê-la para os terroristas etc. Essa afirmação é uma afronta, devíamos (enquanto seres inseridos numa ótica de Estado, subordinados a um regime) nos sentirmos humilhados só em lê-la.

Em breve contexto: Um grupo pequeno de Sírios manifestava em 2011 em Deraa a favor de um grupo de estudantes presos.  Quatro foram mortos pelas tropas do governo, para conter a manifestação. O movimento ganhou força e o número de mortos (entre os manifestantes) sobe para 100. Em setembro já eram mais de 300. O recente ataque químico espreita-se ter matado mais de 1.000. O mundo se silencia, enquanto Damasco chora dentro de um país que por muitos anos sangra, pelo direito de ir e vir, pelo direito de dizer, pelo direito de mudar.  É o preço a ser pago pelo poder. A Rússia, em virtude do interesse político-econômico, apoia o governo vigente, os EUA, em tese, apoiam os rebeldes, mas na prática não auxiliam ninguém e todos nós assistimos ao massacre, que de um lado possui a luta incontestável pelo poder, sem precedentes, sem fronteiras, sem limitações… do outro, a morte de braços dados à resistência, de quem não quer assistir o país retornar às garras do autoritarismo, nem pode sucumbir-se fazendo com que a morte de tantos tenha sido em vão.

A comunidade internacional lê papéis, observa o cofre, faz contas, especula, se reúne, conversa, vota, carimba… Enquanto presenciamos, dia após dia, o espetáculo dantesco do homem sendo lobo do homem na vida real, bem diferente do livro que cito no início do texto, pois o autor (Saramago) errou! E não foi em mostrar que o homem é um ser desprezível por essência, mas por ter omitido que na verdade ele é muito pior. Por ora, o que se observa é exposto nas palavras sensíveis de um amigo: “o mundo tem se tornado cada vez mais um lugar desprezível de se viver”.

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