Arquivo mensal: janeiro 2010

O Desastre

  De repente as nuvens decidiram dar-nos um susto. As “águas” estavam mais rápidas que o normal. Aliás, “normal” não era exatamente a palavra certa. Tem gente que disse que viu luz eu nem vi túnel, nem anjo, nem santo, nem nada… A cegueira tomou-me conta, fiz-me surdo, mudo, infiel… Quis não acreditar naquele pra quem todos oram, quis não olhar para o horizonte tão distante dos meus olhos. Nada quis pois nada pude, as coisas estavam por acontecer. Quem sou eu diante da imensidão fria e destinada da ordem dos acontecimentos? “Destino” é uma palavra bonita, cabe bem à ocasião, mas fico com meu ceticismo, o “era pra ser” terá outra hora.

  Quando dei por mim, não havia barco, não havia praia, não havia gente… Quando abri os olhos para a vida, meu barco já tinha passado, mas eu continuava ali, na enchente de pedras. Vi homens chorarem, casas desabarem, crianças morrerem. Vi as coisas caírem, as ruínas surgirem e as existências despedaçadas. Rompi o ventre do céu? Ou fora eles, os (negros) afrodescentes? Ou os (brancos) norte-americanos? Ou os Brasileiros? Ou já estava a despencar e desmanchar-se no mais fraco?

  Deus foi citado em duzentos idiomas, mas os gritos eram claros e traduzidos por qualquer etnia. As velas poderiam ser para a reza ou para a magia, que diferença faz? Cera derretida não ilumina e concreto caindo impede a oração. Talvez estivéssemos geograficamente longe demais do paraíso, ou então, os celestiais estivessem de férias… Eu voltei à vida, mas o que dizer daqueles que ficaram na ilha, dentro da minha televisão? A quem culpar e a quem agradecer?  

  Parte do mundo enuncia seus pensamentos preconceituosos. A outra parte, da qual eu venho, torce pelos Haitianos. Que o coração do homem seja maior que sua ignorância, que a força de vontade e a esperança não deixem que sua bandeira se perca e, principalmente, que sua nação não se mantenha eternamente debaixo dos destroços.

Direção ou concordância

  As coisas são carregadas de significados. Rabiscos, pinturas, fotografias… Todos são capazes de gerar impacto. Contudo, imagens nem chegam perto da representatividade que têm as palavras e sua infinidade de contextos; As maneiras com que se moldam e ganham vida no ar. Os diferentes jeitos de serem expostas…. Uma mesma palavra pode ir do esdrúxulo coloquial ao sublime erudito e rebuscado. Depende da forma, da estrutura e, não obstante, da intenção.

  Na Alemanha, em 1930, o Austríaco sobe os degraus de onde liberta seus gritos, arrojados e celestiais. Um som alemão soado como orquestra. A frente do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, no idioma: Nationalsozialistiche Deutsche Arbeiterparter. É expressivo, palavras de som agressivo, difícil agradar os ouvidos de quem não é acostumado, mas quem importa? Encantou eles, os alemães. Adolf, seu bigode e suas palavras eloquentes.

  Quem se esqueceria do “Eu tenho um sonho” de Luther King? Palavras históricas, discurso que nenhum museu poderá guardar. Palavras que fizeram o sonho da realidade negra ser compartilhado com outros milhões. “Sim, nós podemos”, disse o presidente… Palavras que fizeram campanha política e foram símbolo de uma reconquista nacional, sem ufanismo tolo, apenas esperança.

  “Não” e “sim” fazem toda a diferença, sem precisarem de adicionais.  Palavras dão título, nome, propriedade… “vá”, “faça”, “pare”, “silêncio”… As mais presentes são elas, as oriundas do fazer apelativo. Fazem da metonímia social, ser o “povo” a parte pelo todo… A elipse engole, o pleonasmo mantém o desnecessário. Hipérbato inverte e o anacoluto torna tudo um pouco bagunçado. É quase uma sociedade, uma metáfora de certo e errado que nem todo mundo enxerga.

  Ainda há quem conceitue “palavra” como um vocábulo representado graficamente ou um conjunto de morfemas! Absurdo, não? Clarisse não se limita: “A palavra é meu domínio sobre o mundo”.

“Hão de ter justificativas… Hão de ter pessoas para tais…”

  Há de haver dor, há de haver brigas e tormentos. Há de haver queixas, frustrações e rancores. Há de haver dias muitos frios, dias muito quentes e dias mórbidos. Haverá dias de sorrisos e dias de lágrimas; dias de morte. Faltarão dias, sobrará tédio. Faltarão abraços e sobrarão tapas.

  Há de haver a dúvida, o receio… Há de haver uma vontade má, um sentimento de fuga. Há de haver a sensação de decepção, de ilusão, de tortura. Há de haver dificuldades quase que insuperáveis; tristezas quase irremediáveis e dores, muitas dores… Mas não importa. Farão as pazes outra vez; vão pedir desculpas. Beijar-se-ão outra vez e fugirão da culpa. Há quem diga que quando se ama de verdade, a chama sempre se reacende e um abraço apertado sempre nos remete para onde tudo começou.

Ao novo e sem adeus

  Passada a festa de réveillon e damos partida à ideia de que outro ano se inicia e um antigo se encerrou. De fato, nada se inicia e nada se encerra apenas dá continuidade. Na prática, o único ciclo que é concluído é o do movimento da terra ao redor do Sol e a única coisa que realmente muda são os números. Na verdade, há implícito a ideia de mais um período de trezentos e sessenta e cinco dias com vida, é, no entanto, o que se comemora.  

  Dizem que o tempo está correndo mais rápido e, sem desrespeitar a ideia gradual e constante da contagem do tempo, há uma verdade nisso. Temos a “capacidade” de concluir em um ano o que levávamos uma década.

  Há cerca de cento e setenta anos desconhecíamos as propriedades de uma célula, algum tempo depois falamos em célula-mãe, células procarióticas, eucarióticas, e suas divisões; mitose, meiose… Atualmente já convivemos com a aplicabilidade de células-tronco que, em resumo, podem se dividir originando células extremamente semelhantes às progenitoras, podendo ser usadas em uma infinidade de tratamentos. Em Dezembro de 1967 foi realizado o primeiro transplante de coração – outro caso na biologia. Hoje, nos Estados Unidos, ocorrem cerca de dois mil e quinhentos deles por ano. 

  A enceradeira, por exemplo – falando em “utilidades” mecânicas -, surgiu na década de cinquenta, excelente auxílio de limpeza. Entretanto, no Japão, está em uso um robô que encera o chão de um prédio de vinte e cinco andares e termina tudo em três horas. Ele conta com um sensor que chama o elevador para que possa se locomover pelos andares do edifício e no final da tarefa se desliga sozinho.

  Vivemos um momento onde a capacidade de criar se casa com a necessidade e a oportunidade. Temos os projetos e as ferramentas em mãos para torná-los reais. Adquirimos conhecimento sobre – entre muitos outros – o potencial de recursos naturais junto à capacidade de expansão de novas tecnologias. Evoluímos ao mesmo tempo em que contribuímos para a “artificialização” das coisas e a “aceleração” do tempo. Corremos o pequeno risco de nos perdermos diante das nossas criações e/ou nos subordinarmos à falta de limites das nossas ideias.

  Enquanto nos designamos à tendência de “evoluir”, os ciclos (psicológicos) oriundos da cultura de crendices persistem, sem prévia de interferências. Assim espero! Que venham muitos outros anos e suas respectivas festas de réveillon, para que eu não deixe de cortejar o glamour da roupa branca e da taça de champanhe, acreditando em um ano “novo”, que todos dizem que está por vir.