Arquivo mensal: outubro 2015

Quando direitos são entendidos como privilégios, erramos

Seria fantástico iniciar este texto exaltando a belíssima iniciativa do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em abordar direitos dos povos, questões de gênero, realidade indígena, violência contra mulher etc. Mas, se por um lado percebemos uma iniciativa memorável do Ministério da Educação (e quero acreditar ser herança da passagem efêmera de Renato Janini por ali), por outro vemos uma reação combustiva, em cadeia, do conservadorismo, do ódio, da intolerância e da falência do nosso modelo de educação (cultural, institucional, familiar). A proposta foi absolutamente satisfatória, mas é cedo para comemorar.

Na internet, é difícil rebater tantos “argumentos” desconexos da realidade. É difícil contestar mensagens tão agressivas sem que passemos facilmente por “arrogantes”. É difícil falar com quem não quer escutar, argumentar sem ser acreditado, lutar com um texto, um discurso, pequenas palestras, contra o monstro que são os séculos de deturpação da informação. Eu não consigo. Este texto não consegue. O ENEM (redação) não consegue. Por enquanto.

Para exemplificar o problema e demonstrar a grandeza do obstáculo, uma jovem que se denomina publicamente nas redes sociais como Luana e possui milhares (!) de seguidores, fez afirmações como a de que a Lei Maria da Penha, ao “privilegiar” (sic) a mulher, vai de encontro à luta pela igualdade de gênero. Sem esmiuçar detalhes técnicos, brevemente elucido que 5,43 a cada 100 mil mulheres no Brasil são mortas dentro de casa. Vítimas da denominada “violência doméstica”. O número se manteve estável desde a publicação da lei até meados de 2014, chegando o IPEA à conclusão de que a estimativa seria de um aumento de pelo menos 10% se a lei não existisse e, não obstante, em março de 2015 constatou-se uma queda no quadro – a lei trabalha com maior rigor na resposta; facilitação no “tratamento” processual; criação de medias protetivas e outros incentivos a denúncia. Ora, o mesmo dado contra homens (também como vítimas de violência doméstica, ou seja, mortos ou agredidos por suas companheiras) é tão excepcional e ínfimo que nem compõe estatística.

Perguntemos à jovem se os homens andam pelas ruas com medo de serem estuprados. Se os homens precisam olhar no espelho antes de sair de casa para não correr o risco de escolher a “roupa errada” e ser responsável pelo próprio assédio. Perguntemos se os homens precisam de vagões de trem exclusivos para não serem abusados. Perguntemos se foi o homem quem só começou a votar apenas a partir de 1932. Se os homens é que só puderam estudar a partir da primeira metade do século XIX (com limitações) e se no Brasil foram eles que só puderem ingressar em ensino superior em torno de 1879 (e mediante reprovação social). Perguntemos se são 23% dos homens que sofrem algum tipo de violência doméstica no país, e se criar cerca de 300 delegacias especializadas é uma demanda emergencial ou um privilégio. Se eu não parar por aqui, os questionamentos não caberão no limite (que é amplo) de caracteres.

Claro que mais importante do que punir e editar leis como a 11.340/2006, é combater uma cultura que banaliza essa barbárie. Devemos combater a ausência de informação e evitar que nasçam mais mentalidades como a de Luana, acreditando que ela deve ser protegida exatamente como o homem, acreditando que o conceito de igualdade é formal, sem compreender que ela contribui para que ela mesma componha uma estatística fúnebre. Não culpo Luana e seus seguidores. Eles talvez nunca tenham  ouvido falar em “isonomia”. E nesse caso, a culpa talvez seja nossa. Quando uma medida que existe para combater a violência cotidiana contra as mulheres, vítimas dentro de suas próprias casas e pelos seus próprios companheiros é confrontada exatamente por uma mulher, apontando, sem nenhum senso de realidade e total desprestígio crítico, que a iniciativa é desnecessária e fomenta a desigualdade, no mínimo há algo grave por trás disso. Nossas escolas e nossa sociedade estão errando (e muito) desde sempre. Se Luana possui discernimento suficiente e aptidões cognitivas normais, é, de alguma maneira, vítima de uma formação educacional amputada, que leva milhares consigo. Somos responsáveis por nos furtamos das responsabilidade na transmissão de informações verdadeiras. Ao negligenciarmos o jogo político do escambo de cargos públicos, ao aceitarmos que a cadeira de um dos ministérios mais importantes do país (o da Educação!) seja moeda de acordo político ou punição para não-aliado. Sentar ali, hoje em dia, é considerado ser “rebaixado” – “tanto ministério que dá mais dinheiro e menos dor de cabeça dando sopa”, é o que pensam.

O trajeto inverso é mais difícil. Evidentemente, gostaríamos que Luana tivesse vivenciado uma educação emancipadora. Por ora, o nosso trabalho, diuturnamente, deve ser pautado em enfrentar essas deturpações. De todo modo, não deixa de ser triste, saber que a ignorância de Luana e de seus confidentes, mata todos os dias. Concluo como iniciei: O ENEM foi progressista e ao mesmo tempo em que elucida o esforço de alguns institutos ante uma realidade de fracasso, escancara o quanto ainda é preciso caminhar e desconstruir os subterfúgios de um discurso que mascara o fato de sê-lo, na essência, suicida (no mais amplo sentido).

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De Quincas Borba a Eduardo Cunha: O que os “machadianos” têm a dizer sobre a conjuntura política atual?

                                    

 

“… Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

(Quincas Borba de Machado de Assis)

Há certas riquezas que inevitavelmente não podem ser desfrutadas por todos e a literatura realista brasileira sugeria como resultado natural desse conflito de interesses a lei do mais forte. Aperfeiçoada ao longo do tempo e afastada de um imaginário meramente fisiológico, hoje, mais atual que nunca.

Para nós, qualidade de vida, direitos e dignidade. Para as tribos de Quincas, batatas. Machado de Assis por meio dos personagens Quincas Borba e Rubião, há muito fazia uma leitura da sociedade moderna e a sua relação com a “finitude” dos seus recursos – falemos de Brasil. Você pode até imaginar uma metáfora óbvia, na qual os políticos representam uma das tribos, nós representamos a outra e nosso dinheiro, as batatas. Mas não. Somos o avesso do humanitismo Machadiano. Cultuamos essa “guerra” pelos recursos e saldamos os vitoriosos, sem ao menos fazer parte de qualquer dos lados, embora sejamos os cultivadores do tubérculo.

Não vim aqui falar só de literatura. Antes fosse. O enredo é até semelhante, os personagens é que não são fictícios. Nas terras (já não mais) tupiniquins, uns governam, outros resistem, outros assistem, ninguém colabora. No primeiro capítulo do ensaio, a reação do povo, personagem que não participa da guerra, mas entrega batatas.

– PSDB protocola pedido de cassação do mandato de Dilma.

– TCU aponta “pedaladas fiscais” que podem gerar impeachment.

– Eduardo Cunha aprova análise de pedido de impeachment.

– Hélio Bicudo e Miguel Reale protocolam pedido de impeachment na Câmara.

– Internautas criam petição online pro- impeachment para incentivar parlamentares.

– Cunha rejeita um dos quatro pedidos de impeachment.

– TSE retoma pedido de cassação de mandato de Dilma.

– Oposição realiza abaixo-assinado para manifestar desejo de impeachment.

– Surge movimento parlamentar Pro- impeachment (com site institucional e tudo mais).

– TCU avalia contas e tomará decisão que pode gerar impeachment da presidente.

À nossa revelia seletiva, há que se indagar o acontecimento de outros fatos…

-Quem está discutindo se o Cunha (que bem poderia ser o Brás Cubas ainda vivo) pode perder o cargo pelas contas (inclusive já bloqueadas) que mantém irregularmente na Suíça? [Fonte: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,suica-confirma-cunha-foi-informado-sobre-congelamento-de-seus-ativos,1775162%5D

-Quem está observando a Câmara facilitando dívidas de outros entes com a União (o que agrava a situação financeira desta)? [Fonte: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/03/camara-aprova-aplicacao-imediata-de-lei-das-dividas-estaduais-e-municipais.html%5D

-Quem reclamou quando o Senado aprovou o PERDÃO de 2 bilhões (isto é 10 VEZES mais que toda a economia gerada com a proposta da reforma ministerial) para planos de saúde? [fonte: http://oglobo.globo.com/economia/defesa-do-consumidor/perdao-de-2-bilhoes-para-os-planos-de-saude-12136524%5D

-Quem achou um desperdício a Medida Provisória aprovada na câmara e negligenciada no senado que propõe (embora alguns aumentos de tributos) a criação de um shopping para os parlamentares orçado em 1 BILHÃO? [Fonte: http://oglobo.globo.com/brasil/senado-aprova-ultima-mp-do-ajuste-fiscal-mas-se-rebela-contra-parlashopping-16286423].

– Quem consegue lembrar que os crimes da Lava-Jato – aquele grande “esquema do PT” contra Petrobras (sic) – envolveu PP, PMDB e PSDB (inclusive com repasses ao ex-presidente do PSDB, Sérgio Guerra)? [Aqui não faltam fontes, mas esse texto condiz com o assunto: http://jornalggn.com.br/noticia/lava-jato-1%C2%AA-condenacao-envolve-supostos-desvios-para-psdb-pp-e-psb]

– Quem está preocupado com o aumento dos salários e benefícios que o congresso tem votado em benefício próprio? E que pode gerar efeito cascata nos Estados. [fonte: http://www.contasabertas.com.br/website/arquivos/10924%5D

– Quem está de olho na constante pauta de reajuste de vencimentos de servidores públicos de carreira? Reflitamos: A advocacia pública sofria defasagem salarial? Sim. Os servidores do judiciário, MP (Ministério Público) e MP de Contas sofrem com ausência de reajuste e perda real do valor dos seus vencimentos? Sim. Todas as carreiras devem, no decorrer do tempo, serem beneficiadas por reajustes, acompanhando o processo inflacionário e inseridas em um processo de valorização institucional linear? Sim. Ocorre que, o surgimento desse tipo de pauta este ano com as contas como estão e com o impacto que elas podem gerar, não é apenas uma coincidência. [fontes: http://www.brasilpost.com.br/2015/08/06/derrota-governo-na-camara_n_7946584.html  +  http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/06/senado-aprova-aumento-de-ate-78-para-servidores-do-judiciario.html e http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/senado-aprova-aumento-de-41-ate-2019-para-servidores-do-mp.html].

“ Não é só nas ações que a consciência passa gradualmente da novidade ao costume, e do temor à indiferença. Os simples pecados de pensamento são sujeitos a essa alteração, e o uso de cuidar nas coisas afeiçoa tanto a elas, que, afinal, o espírito não as estranha, nem as repele.”

Com o que estamos preocupados, afinal? Sejamos mais criteriosos. Essa “síndrome de Estocolmo” que alimentamos com a oposição do “pro-impeachment” – enquanto eles adotam uma série de medidas que, para prejudicar a governança do executivo federal, atinge diretamente a população – no mais sutil dos eufemismos, não parece sábio. Seríamos Rubião cultivando afeto por Cristiano e Sofia*? [personagens da obra de Machado de Assis, onde aquele primeiro, inundado pela confiança ingênua depositada nos dois últimos, é reduzido à ruína].

Permitam-me um palavriado popular: Se o barco afunda, você vai junto! Quem ganha? Com certeza ganha o Vice, o partido dele, seus aliados e os que se articularem para o novo mandato. Nada ganhamos eu e você.  Contudo, vamos ao óbvio (que negamos): Pode tirar a Dilma e colocar o Obama e a Angela Merkel para governar o Brasil que não haverá “a solução” para o problema econômico.

Mesmo se um franciscano assumir no lugar da Dilma, ele também terá de adotar medidas de austeridade (que machucam a população) para pagar as contas (e sim, boa parte delas resultado de escolhas do Partido dos Trabalhadores, mas manifeste este inconformismo na eleição), e o motivo é o de que essa conversa de reduzir o próprio salário e cortar ministérios (embora atitude necessária e correta!) tem impacto irrisório na resposta bilionária que precisa ser dada às contas públicas.

Digo-vos com honestidade que não faço uma defesa ao governo de Dilma, mas um apelo à sociedade! Qual seja: E-v-o-l-u-a-m-o-s.

 

“…não há serenidade moral que corte uma polegada sequer às abas do tempo”

O inconformismo com o PT é válido. Os erros na política financeira realizada pelo partido na última década são evidentes. Mas quando a prioridade é apenas impedir a Dilma Roussef de governar, defende-se um suicídio político-social. Esta inquietação ideológica podemos externar em 2018. Por enquanto, paremos de defender um congresso (pro-impeachmt) que aumenta os gastos do país apenas para prejudicar o governo, como se prejudicar o governo não fosse a mesma coisa que prejudicar a minha vida e a sua. Saiba que se a possibilidade de ajustar as contas se tornar cada vez mais distante e dificultosa, mais distante também será a nossa possibilidade de deixar de sentir a crise que ela suscita (e tem custado caro).

Priorizemos o mínimo de raciocínio político em detrimento das nossas paixões. Por paixão, Rubião de “Quincas Borba” perdeu toda a sua fortuna e morreu enxergando-se afortunado, mesmo que vítima da própria ingenuidade em meio a uma sociedade de máscaras, que usufruía de riquezas que vieram do acaso – à filosofia humanitista empregada na obra, a moral não é pressuposto da convivência, mas pelo contrário. A dissimulação e o convencimento é subterfúgio para a manutenção de uma relação de domínio (ainda que ideológico).

Ao vencedor, as batatas” exclamou Rubião antes de falecer como miserável, acreditando sê-lo Imperador Francês. De olhos abertos e desconfiando dos bem intencionados, fujamos das consequências enquanto há tempo.

“Antes de principiar a agonia, que foi curta, pôs a coroa na cabeça, — uma coroa que não era, ao menos, um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadores palpassem a ilusão. Não, senhor; ele pegou em nada, levantou nada e cingiu nada; só ele via a insígnia imperial, pesada de ouro, rútila de brilhantes e outras pedras preciosas.”

……

Nota: Tive o privilégio deste texto ter sido igualmente publicado pela revista virtual Pragmatismo Político: aqui.

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