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Quando direitos são entendidos como privilégios, erramos

Seria fantástico iniciar este texto exaltando a belíssima iniciativa do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em abordar direitos dos povos, questões de gênero, realidade indígena, violência contra mulher etc. Mas, se por um lado percebemos uma iniciativa memorável do Ministério da Educação (e quero acreditar ser herança da passagem efêmera de Renato Janini por ali), por outro vemos uma reação combustiva, em cadeia, do conservadorismo, do ódio, da intolerância e da falência do nosso modelo de educação (cultural, institucional, familiar). A proposta foi absolutamente satisfatória, mas é cedo para comemorar.

Na internet, é difícil rebater tantos “argumentos” desconexos da realidade. É difícil contestar mensagens tão agressivas sem que passemos facilmente por “arrogantes”. É difícil falar com quem não quer escutar, argumentar sem ser acreditado, lutar com um texto, um discurso, pequenas palestras, contra o monstro que são os séculos de deturpação da informação. Eu não consigo. Este texto não consegue. O ENEM (redação) não consegue. Por enquanto.

Para exemplificar o problema e demonstrar a grandeza do obstáculo, uma jovem que se denomina publicamente nas redes sociais como Luana e possui milhares (!) de seguidores, fez afirmações como a de que a Lei Maria da Penha, ao “privilegiar” (sic) a mulher, vai de encontro à luta pela igualdade de gênero. Sem esmiuçar detalhes técnicos, brevemente elucido que 5,43 a cada 100 mil mulheres no Brasil são mortas dentro de casa. Vítimas da denominada “violência doméstica”. O número se manteve estável desde a publicação da lei até meados de 2014, chegando o IPEA à conclusão de que a estimativa seria de um aumento de pelo menos 10% se a lei não existisse e, não obstante, em março de 2015 constatou-se uma queda no quadro – a lei trabalha com maior rigor na resposta; facilitação no “tratamento” processual; criação de medias protetivas e outros incentivos a denúncia. Ora, o mesmo dado contra homens (também como vítimas de violência doméstica, ou seja, mortos ou agredidos por suas companheiras) é tão excepcional e ínfimo que nem compõe estatística.

Perguntemos à jovem se os homens andam pelas ruas com medo de serem estuprados. Se os homens precisam olhar no espelho antes de sair de casa para não correr o risco de escolher a “roupa errada” e ser responsável pelo próprio assédio. Perguntemos se os homens precisam de vagões de trem exclusivos para não serem abusados. Perguntemos se foi o homem quem só começou a votar apenas a partir de 1932. Se os homens é que só puderam estudar a partir da primeira metade do século XIX (com limitações) e se no Brasil foram eles que só puderem ingressar em ensino superior em torno de 1879 (e mediante reprovação social). Perguntemos se são 23% dos homens que sofrem algum tipo de violência doméstica no país, e se criar cerca de 300 delegacias especializadas é uma demanda emergencial ou um privilégio. Se eu não parar por aqui, os questionamentos não caberão no limite (que é amplo) de caracteres.

Claro que mais importante do que punir e editar leis como a 11.340/2006, é combater uma cultura que banaliza essa barbárie. Devemos combater a ausência de informação e evitar que nasçam mais mentalidades como a de Luana, acreditando que ela deve ser protegida exatamente como o homem, acreditando que o conceito de igualdade é formal, sem compreender que ela contribui para que ela mesma componha uma estatística fúnebre. Não culpo Luana e seus seguidores. Eles talvez nunca tenham  ouvido falar em “isonomia”. E nesse caso, a culpa talvez seja nossa. Quando uma medida que existe para combater a violência cotidiana contra as mulheres, vítimas dentro de suas próprias casas e pelos seus próprios companheiros é confrontada exatamente por uma mulher, apontando, sem nenhum senso de realidade e total desprestígio crítico, que a iniciativa é desnecessária e fomenta a desigualdade, no mínimo há algo grave por trás disso. Nossas escolas e nossa sociedade estão errando (e muito) desde sempre. Se Luana possui discernimento suficiente e aptidões cognitivas normais, é, de alguma maneira, vítima de uma formação educacional amputada, que leva milhares consigo. Somos responsáveis por nos furtamos das responsabilidade na transmissão de informações verdadeiras. Ao negligenciarmos o jogo político do escambo de cargos públicos, ao aceitarmos que a cadeira de um dos ministérios mais importantes do país (o da Educação!) seja moeda de acordo político ou punição para não-aliado. Sentar ali, hoje em dia, é considerado ser “rebaixado” – “tanto ministério que dá mais dinheiro e menos dor de cabeça dando sopa”, é o que pensam.

O trajeto inverso é mais difícil. Evidentemente, gostaríamos que Luana tivesse vivenciado uma educação emancipadora. Por ora, o nosso trabalho, diuturnamente, deve ser pautado em enfrentar essas deturpações. De todo modo, não deixa de ser triste, saber que a ignorância de Luana e de seus confidentes, mata todos os dias. Concluo como iniciei: O ENEM foi progressista e ao mesmo tempo em que elucida o esforço de alguns institutos ante uma realidade de fracasso, escancara o quanto ainda é preciso caminhar e desconstruir os subterfúgios de um discurso que mascara o fato de sê-lo, na essência, suicida (no mais amplo sentido).

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