Arquivo mensal: junho 2010

“De meros vazios se constrói o recheio da existência”

  Já que nascemos sem devido propósito, que não levemos um tempo inútil a procurá-lo. Há mais. Há vida, esperando, esperando…  Seremos heróis sem querer, seremos vilões sem perceber e talvez não haja ninguém para interceder por nós. Não é visão pessimista, tudo tem lá uma forma de ser vantajoso e intercedo pelas enunciadas como fatos. Nas hipóteses mais raras, que não estejamos completamente sós.

  Chorar é preciso, mas lágrima nenhuma será interpretada como desperdício. Pois a dor nos dá uma possibilidade de reflexão única. Prezemos para que as coisas quais nós acreditamos nunca se esvaiam. Mas se mortas, que tenham um significado; se incrédulas, que tenham valido apena o período que pudemos acreditar. 

  Sei do tempo que o medo construído era consequência de outro ato isolado, se consumado, tragédia; se evitado, vitória. Hoje o medo alicerça sociedades e se banalizado, que além da esperança, tenhamos sorte.

  Quando aqueles quais depositamos nossa confiança, vierem a morrer, que não deixemos de crer na vida. Que continuemos, tendo no coração, que o caminho por mais que longo é deveras interessante. A chegada tem um mérito, no qual esses especiais à alma iam bater palmas, se vivos estivessem dispostos a olhar por nós.

  Eu quero que creia no amor, e se não puder, procure outros meios, pois a ausência das emoções tende cordialmente a nos padecer. Que possamos acreditar nos nossos próprios corações. Que os sentimentos, mesmo que repletos de reparos sirvam como chão.

  Que as nossas palavras sejam certas como a força que acreditamos que elas têm. Quando não apreciadas, que tenham o respeito; quando depreciadas, que surtem efeito e que não voltem contra nós. Mas que todos se encarem, mutuamente, como iguais.

  Sejamos particulares à medida que compartilhamos. Sendo, por mais que individuais, dotados de companhia. Veja-se no outro, mas se reconheça ao olhar no espelho.

  Vida. Assim, justa na medida da injustiça. Boa na medida em que entristece… Um suicídio diário de vontades, regado de incertezas. Cada punhalada sangra como uma hemorragia fastidiosa. Cada dia deprimente nos esconde o dono do sorriso ideal.  Mas não temos as respostas, temos poucas escolhas e do pouco que sabemos, é preciso viver e é preciso crer que podemos sempre mais.

* Citação título, Hugo von Hofmannsthal – Livro dos Amigos.

O Condenado – personagens.

  Alfred Thompson. Escreva aí, camarada.

  Soletrar? Ah, sim, claro. A – l – f – r – e – d – t – h – o – m – p – s – o – n. Não senhor. Não sou culpado. Ao menos não do que vocês estão a me culpar. A minha história é triste, mas não acho que estamos no lugar ideal para que seja narrado o drama de uma novela… Vou dizer o que não cabe segredo e tentar ser o mais sucinto possível. Os senhores provavelmente estiveram em uma condição catedrática diferenciada, boas oportunidades na vida. Caso contrário, não estariam na posição qual se encontram, aí, do outro lado, olhando para mim. Se nossas vidas estivessem se cruzado há alguns anos, poderia ser eu, o privilegiado, adotando uma perspectiva um tanto quanto patética ao conceito de “privilégio”, claro. Estão me acusando de um homicídio, mas ninguém pode ser culpado pela morte alheia, nem mesmo o morto, digo, quando suicídio, se é que me entendem. Atribuir “culpa” a “morte” é uma enorme incoerência. Morrer não é uma lástima ou uma sentença, morrer é uma certeza, só isso… A palavra não é “matou” a palavra é “morreu”. Roubo não! Senhores, se eu tenho fome, eu como. Roubar é subtrair para si ou para outrem, algo de propriedade alheia. João Alquino era o dono do trigo e, depois de extorquido, teve de “repassá-lo” a alguém. Emanuel fez o pão que custaria 46 moedas ao povo e obtém de seu senhor, apenas 10 moedas pelo tal. O carrasco se abstém dos impostos e eu não pude pagar por esse pão da hipocrisia. Contudo, tenho fome. Tenho fome e eu preciso comer sabem do que falo? Tinha um gosto de vergonha, mas saciou a dor. Quantos desses pães têm em suas residências, camaradas? E quantas verdades? O seu trigo, senhor da cadeira maior, era diferente do trigo do senhor Alquino? Que seja. Formação de quadrilha é risório! Nem sei quem são esses que vocês insistem em dizer que são meus “companheiros do crime”. Ouvi dizer que um aí é assaltante de bancos, isso é interessante. Nem tanto pelo dinheiro, mas pelo risco. Mas repito, não sou bandido, fui parido pelo mundo e ele não quis criar. Agora, depois de 23 anos querem moralizar a incompetência do Estado. Quem precisa ser reabilitado está lá fora, na mais nobre carruagem. Não me interpretem mal, longe da minha pessoa fazer um motim, a verdade é assim mesmo, escancara as portas sem cogitar as consequências… Fiz isso na música, a madeira fina do violão fez desse o meu amigo. A gaita é só pelo som aconchegante e alimenta almas sem muitas projeções e esperanças. Os senhores gostam de blues? (…) Tráfico? E para que vender a liberdade? Ta aí uma coisa que devia ser revista, o conceito do que é tóxico e o que não. Estar drogado é estar vivo, é ter os olhos abertos diante da impunidade com os “inacessíveis”. Confesso que, por um dia, queria uma cadeira no clero. Vocês teriam um café aí pra mim? (…) Heresia? Senhores, não sejamos arcaicos e obsoletos. Como atribuir toda bondade a Deus? Se ele segurou casas em pé, dormia quando começou o dilúvio e derrubou muitas? Se lhes deu o que comer – aponta ao corpo de jurados – quem é que tira dos meus? Se lhes deu camas macias, por que os meus morrem enforcados? Por onde ele anda? Desejo que se sente aqui, conosco e concedendo-nos o prazer da sua presença suprema, participe dessa festa como réu. Com todo respeito, camaradas, um homem só pode julgar outro quando estão nas mesmas condições, o que não é o caso. Terão de nascer de novo, ou sortear um juiz entre vocês para por uma cadeira ao meu lado enquanto me retiro daqui e retomo o meu anonimato.

 – O senhor profere palavras insanas contra a corte! Há mais alguma coisa que queria acrescentar antes de declararmos a sentença?

…Posso ir ao banheiro? (…) Aliás, quando disserem que sou louco vou dizer que sim, mas essa não foi minha queda. Eu estava preparado para a loucura, ela é que não estava preparada para mim. Sentenciados, caros senhores, estamos todos nós! Mas que sejam profanadas as suas asneiras.

 O Juiz, chefe do conselho que compunha o corpo de jurados, interveio:

– Ainda não! Quero ouvi-lo. Deixe que continue. Entretanto, senhor Thompson, caso venha a se dirigir a essa corte com desacato, depreciando-a, outra vez, será queimado em praça pública sem mais!

  Como quiser excelentíssimo, queridíssimo, meritíssimo juiz. Depreciar ou não é um mero ponto de vista. Entretanto convenho a cumprir como foi dito pela sua pessoa e bem entendido pela minha. Nota-se que os senhores têm que ilustrar aqui a existência de um grau de hierarquia. O subalterno e os doutores. A roupa cara, bem postada e a roupa rasgada. Cadeira alta, cadeira baixa. É tipo a donzela e o plebeu, mas nesse caso eles não se gostam. Sem piadas? Claro, claro. Nem sabia que estava sendo engraçado. Continuando… São os que podem denegrir de um lado e o que tem a obrigação de permanecer calado, já que suas palavras atingem os seus senhores, enquanto o “bandido” que é cuspido, com muita verborragia, a mim, é interpretado como uma qualificação. É o que eu chamaria de rótulo preconceituoso, mas vou parar por aqui, pois nota-se pela expressão daquele que intercedeu para que eu tenha uns minutos a mais, que as minhas chances estão perto de se esgotar e tornar-me um belo churrasco de carne suja não está entre meus objetivos.

 – Já percebi que o senhor entendeu Senhor Thompson. Continue apenas com as partes pertinentes a esse julgamento.

  Como posso continuar postando-me em uma linha tênue de tolerância se os senhores insistem em se considerar aptos a julgar!

 – Senhor Thompson, não terá outra chance, é assim que pretende continuar? Posso parar por aqui e aplicar-lhe o que prometi!

  Não, não, muita calma camarada. Muita calma… Vamos acreditar no que os senhores constroem aqui, nessa ocasião. O que os senhores chamam de “julgamento”. Haverá um dia, camarada supremo, aliás, senhor juiz, perdoe a inconveniência dos meus vocativos. Continuando, haverá um dia em que os loucos serão idolatrados e o povo há de condenar aqueles que se vêem detentores da lei. A única lei qual eu respeito é a lei da sobrevivência, da qual respeito, mas pouco utilizo, pois quando o faço venho a parar onde estou nesse momento. Proponho aos senhores, que vão, um dia, conhecer o lugar do qual eu venho. Vejam as nossas crianças, vejam as nossas casas, vejam a nossa comida e principalmente, o quanto há nos nossos cofres, pois os bens materiais e as moedas palpáveis regem as estruturas quais os senhores se alicerçam e pouco importa para os meus. Eu não tenho medo do que os camaradas chamam de sentença. O que eu quero dizer é que não estou com medo agora, nesse instante. Fui ferido pelos seus, mas não tenho dor. Não tenho tristeza ou ódio. Poderia ter pena, já que os senhores não conseguem notar o limite da própria ignorância. Decoraram um livro de normas, decoraram como aplicá-las conforme o ensinamento de outro magistrado aristocrata. No mais são cegos, surdos e mudos. Ainda assim, não sinto pena, o que sinto é vergonha. Não é vergonha por mim, não é vergonha por algo que fiz, já que sou o detentor dos meus próprios julgamentos, dentro da minha ótica do que é certo e do que é errado. Tenho vergonha dos senhores, tenho vergonha de compartilharmos a mesma sala. Tenho vergonha de olhar nos olhos de homens que nunca saem dos seus castelos, mas se julgam detentores do poder interpretativo do que é melhor e o que é pior àquelas quais os senhores não conhecem, dos quais os senhores fogem e covardemente se protegem, já que nós não temos como nos proteger de vocês. A discrepância de nossas armas é incalculável. Enquanto temos facas, os senhores têm títulos de nobreza e tribunais. Porém, não se esqueçam que somos maioria.

 Thompson sabia o significado e as consequências de suas palavras. Esperou ansiosamente a fúria dos jurados que unanimente o mandariam para a forca em instantes. Entretanto, se surpreendeu. Estavam todos calados, na expectativa de que o réu continuasse o seu depoimento. Poderia falar por mais umas duas horas ininterruptas, mas postou-se a sintetizar suas conclusões.

   Senhores, eu ironizo o vocativo “meritíssimo”, pois a mim, não há mérito que os consagre se não o sobrenome que carregam. Não a sangue diferenciado, ou predestinação. Nessa sala, se não houvesse conhecimento de nossas situações e condições, seríamos diferentes apenas pela cadeira que sentamos. Seria um dia, quase digno de julgar. Quero alertá-los, camaradas, que nós, podemos ser punidos todos os dias, que não vai fazer diferença. Nascemos inerentes à punição! Somos castigados diariamente pela vida e a privação de nossa liberdade está longe de nos intimidar. E podem matar cem de nós por dia, que eu tenho certeza que duzentos estão a nascer e aptos para incomodar. Estamos encontrando os meios, estamos nos equipando de armas legítimas, estamos partindo para uma guerra. Aqueles como eu serão lembrados e taxados como um incentivo. Os que sobreviverem, é óbvio. Pode demorar, mas os loucos, como eu, porão o seu sistema a ruir. Vamos “subir” pra buscar o que é nosso. Com Deus ou sem Deus, na terra dos homens vence o que melhor lutar. Se for um céu que nos espera, compartilharemos de um reino, estando todos no mesmo nível. Nesse caso, vou procurá-los para fazer devidas cobranças, senhores juízes. Se eu, e os como eu, dito súditos, formos para o inferno, ótimo, pois povoado será esse lugar, pelos mais nobres homens que habitaram essa escória, qual chamam de terra. No mais, prefiro que apenas a morte nos espere como sempre acreditei. Tenham fé, no seu Deus, camaradas, pois a minha fé está no novo conceito de justiça que os meus estão se preparando para construir.

Alguns minutos de silêncio. O Juiz se pronuncia.  

Eu intercedo por esta corte. Hoje tomo a responsabilidade de calar os meus colegas. O senhor está longe de se assemelhar a qualquer indivíduo que já passou por aqui. O senhor não vai mudar o meu conceito sofre crimes como furto, os inoportunos como a morte, muito menos a minha fé. O senhor é dotado de uma ousadia inconsequente, porém oriunda de sua indignação, qual, como o senhor mesmo disse, eu não vivencio, mas conheço. Um tribunal não pode se auto-sentenciar como detentor de medo produzido pelo réu. Mas confesso que esse receio, hoje aqui, nasceu em nós, corpo de jurados. Alguns interpretariam como uma forma de ameaça do réu para com a autoridade que o julga. Mas esses, eu acredito que não são detentores de poder de interpretação. São os que o senhor chama de “surdos, mudos e cegos”, conceito qual eu me enquadraria na sua ótica de argumentação. É um contrassenso eu concordar, mas uma ignorância eu negar. Deus esteve aqui presente, por mais que o senhor não venha a crer na sua existência. Deus esteve aqui, não como réu, mas com o réu e com os juízes. Ele intermediou a cerimônia. Graças a ele eu faço uma nova sentença. O senhor, Sr. Thompson é um indivíduo único, uma rara criação de Deus…

  Meritíssimo, ou como preferir ser chamado. Por favor, poupe o discurso, não se desvie do seu caminho. Cumpra o primeiro ato digno da sua vida, eu não entrei aqui para sair vivo. Não me decepcione.

 O Juiz ficou aturdido. Sabia o que Alfred queria, e sabia que, infelizmente, teria que dar a ele. O tribunal estava agitado, aqueles privilegiados que assistiam quase não conseguiam se conter em euforia.

 – Senhor Thompson, muito me impressiona o quanto suas palavras de ares insanos, são possuidoras de verdades e de promessas. Custo acreditar que o senhor descobriu e já utiliza as tais “armas legítimas”. Agora tudo faz sentido. Sei que morrendo o senhor será bem mais repercutido do que em vida. O discurso desdenhando a morte já ilustrava a sua cobiça pela condenação, mas fui cego e surdo no exato momento em que você queria. O senhor é realmente grande demais para caber nesse mundo. Dou-lhe o mérito por eu retirar-lhe o rótulo de bandido. É músico, profere um blues muito apreciado nas periferias. No que posso deduzir um conselheiro aos fracos e um compositor de letras revolucionárias. Plantando na mente das pessoas uma semente que a lembrança da sua existência vai cultivar até que todos possam, pelas próprias mãos, fazer as devidas reivindicações, no dia que forem loucos como o senhor e entenderem que são a maioria. Muito bem. Cometeu os delitos dos quais sabia que, mesmo convencendo-nos de que era honesto e concretizando o respeito que precisa para entrar para a história, não poderíamos deixar de aplicar-lhe a sansão, qual também precisa. Fui mudo, quando o senhor precisou falar. Sabe bem que a primeira coisa da qual seus “loucos” vão cobrar é a sua morte.

   Errei em subestimá-lo, camarada superior.

 O juiz suspirou e esboçou um ar de catarse e frustração de quem sabe que cavou a própria cova…

 – Eu declaro o senhor Alfred Thompson, culpado pelos crimes de assassinato, furto e heresia. Sentenciado a pena de morte por decapitação, conforme manda o código de leis diante da acumulação dos crimes citados e suas devidas qualificações penais.

Thompson abriu um leve sorriso e foi levado para a guilhotina por alguns militares enquanto os outros disparavam tiros contra a multidão que atirava pedras nos juízes. Antes de ser decapitado, o condenado ainda indagou:

   Qual será a reação de Deus quando o herege for santificado?

 

 

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