Arquivo mensal: setembro 2016

No fim das contas, dos Anjos.

  Saber lidar com a morte é uma exceção. O natural [não disse “certo”!] é realmente sofrê-la, senti-la, temê-la. Eu me encontro categoricamente na segunda opção. A morte de Domingos Montagner, como a de todo artista, tem grande espaço na mídia, mas paira algo de especial. Por mais que a morte sugira apenas tristeza, há em torno dele algo de lúdico. Um conjunto de fatores contribui: a ironia pelo fato da vida do ator e do personagem traçar caminhos parecidos, repercutindo uma tragédia em um rio que devolve a vida do fictício, mas encerra a do ator; a identidade que a população criou com o personagem, com suas vontades, sua bondade, sua forma de encarar destemidamente os desafios da vida. Santo dos Anjos parece imortal, regido pelas suas convicções, pelo seu papel enquanto representante de seu povo, seu amor incondicional pela sua família… Talvez doa mais ainda saber (por mensagens daqueles que cercavam Domingos) que o personagem tinha muito a ver com seu intérprete. E talvez seja uma confusão de sentimentos o fato de que a novela, inacabada, segue, com Santo vivo e Domingos morto – ou vice versa.

  Eu não assistia novela desde a infância, época em que compartilhava o colo da minha vó. Um dia, por acaso, eu assisti a um trecho de Velho Chico. Interessei-me, para minha surpresa. Fugia do óbvio. Personagens complexos, uma realidade assimilável, de um lado uma crítica contundente da forma retrógrada de se fazer política hoje em dia, do outro a nostalgia saudosista de uma maneira de levar a vida que para muitos, infelizmente, é “do passado”. Diálogos poéticos sem ser pitoresco, o resgate de valores interpessoais, a relação de intimidade com o outro e a necessidade de se cultivar empatia pelo próximo me encantaram na dramaturgia. Os autores conseguiram construir o que se exige normalmente em uma trama, entre heróis e vilões, sem deixar de ressaltar que até do mal pode surgir algo de bem. Quando as coisas ruins aconteciam a novela ainda conseguia nos dá uma lição pertinente, atual e humana.

santo

  O personagem Santo dos Anjos carregava esse contexto consigo, logo, era fácil se envolver com ele de cara. Curioso que sou, nutri interesse por informações a respeito do ator também. Sempre que tinha a oportunidade me atentava ao que diziam sobre ele. Recentemente voltando de uma viagem, abri sem compromisso a revista da companhia aérea e já me deparei com uma entrevista completa com Domingos, dessas que perguntam coisas da vida, sem tanta banalidade. Conclusão: O sujeito era de uma autenticidade incrível.

1

  Foi então que nesse curto intervalo comecei a admirá-lo, sobretudo pelas afinidades que compartilhamos, sem nos conhecermos – eu, de certa forma, me enxergava em algumas de suas palavras, pois a cada pergunta lida, via-se a simplicidade e leveza das respostas. Ele tinha um jeito de encarar a vida que em muito se alinhava às minhas perspectivas. O brilho nos olhos, amor pela vida e tudo que ela pode oferecer.

  Sou completamente adepto à ideia de que a gargalhada é alimento da alma. Contudo recebi a notícia de ontem como se fosse piada, mas dessa vez, fui impedido de sorrir. Nunca o vi pessoalmente, nunca conversamos, ele nunca soube da minha existência, não possuímos nenhum vínculo direto, específico, mas não é necessário. A empatia é suficiente para que compadeçamos da dor. Entender e perceber o outro, atribuir sentimento ao que nos comove, talvez seja alguma de suas tantas mensagens.

  Como as nossas semelhanças não se repercutem no seu talento, deixo as últimas palavras (abaixo) para quem, como você, tem vocação para arte, com trecho da sua música tema e sigo calejado, tentando mais uma vez, assimilar a morte de outra forma. E buscando enxergar o legado que há por trás dessa história, sem deixar de considerar o mistério em meio a qual as coisas simplesmente acontecem. Domingo Montagner, é agora, de alguma forma, também “dos Anjos”.

3

“Se alguém tem que morrer

Que seja para melhorar.

Tanta vida pra viver, tanta vida a se acabar…

 um tanto pra se fazer, com tanto pra se salvar

Você que não me entendeu

Não perde por me esperar”

(Música: Geraldo Vandré).