Arquivo mensal: outubro 2011

Espiando um acanhado cotidiano: A Contrafação

De longe pude notar a balbúrdia. Um pouco de gente, dessa como eu, que não tem muito que fazer. Um botequim de quase nenhum consumidor, mas alguma platéia. A princípio um vestígio de conversa fiada que encadeou o tumulto. Um homem grande, forte, gesticulava a esmo. Tinha raiva incontida e alguma certeza no que dizia, ainda que meia dúzia de homens ao seu redor discordasse. Falava um bocado de palavrões, arremessou uma cadeira contra dona Judite, que na passagem pestanejou um “bem feito”.

Não podia ser contido pelos companheiros ou pelos curiosos, o que ele queria era a verdade. De longe, sentado em uma das cadeiras que sobrava, observei com atenção e nem um gole de cevada pude desfrutar, enquanto um senhor assustado se aproximava. Esperei atônito. O homem meio amarelo, convicto de atuar naquela cena de alguma maneira significativa. Veio dar ao dono da fúria o que lhe era de direito e tirar-lhe um peso que tanto lhe afortunava.

Um homem de parco tamanho e aparente fraqueza, que poderia ser morto ali mesmo! Era como se cada suspiro seu fosse a certeza de que ainda podia… se estava vivo, portanto, devia continuar. Seus passos ficavam mais pesados a cada centímetro que se aproximava daquele cenário, sinto que ensaiava essa cena centena de vezes. Dentre orgulhos e caprichos, estava prestes a eivar aquele ambiente de um regionalismo tolo cujo uma reação impiedosa ascenderia o sentimento de glória. Glória fracassada e triste, mas ainda glória, entre “machos” como ele, como eu, ou como tantos de nós. Adentrou, parou de frente ao homem grande, que tinha um companheiro tentando segurar-lhe cada braço… Olhou para cima e iniciou:

“Meu senhor, não se incomode a fim de sanar uma dúvida que farei sem pestanejar. – o homem sentira-se desafiado. Quem seria aquele raquítico tomando seu tempo? – Fora um beijo? Sim, eu lhe digo, ou melhor, lhe confesso – neste momento sua raiva pareceu tomar projeções inimagináveis, mas se conteve. Não sabia se podia acreditar, precisava ouvir até o final – Teve um pouco do seu mérito, já que o seu descrédito enquanto pátrio familiar, enquanto amigo e companheiro, fez com que ela procurasse novo abrigo. Foste um ato uno que em mim, postou-se a eternizar-se. É bem maior que qualquer sonho e se eu morrer sozinho eu terei do que, e de quem, me lembrar, com pouco orgulho, mas muito sentimento. Se o céu existe, terei do que me gabar ao chegar. Se acabar junto a terra, eu levo o que a lembrança deixar. De uma forma ou outra, estou convicto, embora em meio a tanto risco, que vivo aquilo que um amor podia proporcionar-me. O amor tem dessas, o senhor sabes? Não, não sabes, porque o senhor nunca o sentiu. O que o senhor tem é desejo, é libido e propriedade o que às minhas vistas, culmina em destreza. O que aconteceu comigo é só aqui, dentro do peito, ainda que seja um ato covarde e um sentimento suicida. Não estou aqui para me desculpar, embora deveria… Mas a vida há de convir, que sendo justo ou injusto, algumas coisas simplesmente acontecem, sem que alguém faça um juízo de errado ou certo. Postei-me numa condição em que o resultado virá de seu arbítrio”.

Um silêncio inconveniente se apossou do momento, sem trégua. Encaravam-se, estáticos. O desconforto instaurou-se na calma. O suor descia à face do pequeno homem… O traído e o traidor, cada um propondo a sua significância, cada qual dono da sua justificativa, da sua justiça, da sua razão… O grandalhão e o poeta falido. Uma mulher, dois homens e um delito. Sem meias palavras, o marido desviou-se daquele e partiu cabisbaixo. O poeta seguiu em frente, apanhou um trem sem destino, realizado e sem pretensão de olhar para trás. Da adúltera não se teve notícia. Pouco se acredita que esteja viva tão como aquele que, desse modo, usurpou da sua liberdade. Judite passou uma vassoura no chão empoeirado, as cadeiras foram reorganizadas. A minha cerveja ainda estava gelada, antes de partir, esperei a tarde acabar e o crepúsculo borrar o céu. Apanhei o chapéu, deixei as moedas, algum dia eu voltaria por lá e seria, quem sabe, expectador doutras histórias.

“Somos feito da mesma matéria que nossos sonhos”*

Em parte são as lembranças. São as vontades guardadas pedindo pra tomar forma. É o peito que arde, fibrilando. É o olho que umedeci  é a mão que treme, os joelhos que se dobram e as lágrimas, por fim, descem. Molhando a face e escancarando a saudade… Ou a esperança, ou o medo, ou quem sabe a glória. Não se chora apenas pela derrota, mas também por se ter sonhos, dos quais acredita ou não, dois possíveis e dos impossíveis. Realizáveis ou utopias. Dos quais, a própria existência se faz por valer de todos os sentidos, fazendo dum aglomerado de fantasia um momento verossímil. Faço valer das célebres palavras de Ruy Barbosa; “Não nos será claro que, com os nossos descendentes e sobreviventes, com os nossos sucessores e pósteros, vive ele de fé, esperança e sonho?”

Daqueles que fazem da esperança uma verdade absoluta, para que discretamente ela se valha da persistência. E das verdades, um motivo que explique. Dos motivos, um sentido que justifique. Dos sentidos, um único: viver. Na simplicidade das vontades, quando por elas ainda lutam. Na humildade das conquistas, quando a elas alcançam… Na coragem e no respeito, quando padecem. Eis um homem. Eis o que vive dos sonhos.

E quando tudo se perde, se desfaz? Esse é o momento em que o desespero nos apossa, quando o medo é mais forte, a insegurança fala mais alto. Por mais que o cérebro já não responda, o coração ensandecido nos inunda de sangue, percorre o corpo e nos enche de vida. Eis a suficiência, da existência pulsante da vontade involuntária de continuar, eternamente, enquanto essa “eternidade” durar… Os sonhos se renovam. O ar mantém sua trajetória. Inspira-se, espira-se, respira-se. “Estou vivo”, basta saber.

No dia em que se deparar com a dádiva da abundância sorte, contenha-se. Poupe as palavras e a euforia. Contido mantenha sua integridade e sua consciência de que os motivos para que tal situação pudesse se concretizar, vão muito além de “fez por merecer”,  a vitória em si é mais palpável que a vontade de tê-la. Ele sabia, ele podia crer, ele é mais do que um homem de sorte. É um homem de sonhos. Os músculos da face se contraem a fim de permitir um tão esperado sorriso. A vida é uma luta, a gente sabe o quanto apanha e entra na expectativa de sair vencendo. Mas que sempre, sempre tenhamos sonhos, pois é em face deles que se vale a pena tentar.

*Citação do título: William Shakespeare